A União Europeia deve reagir à crise da democracia e do Estado de Direito no Brasil

10/06/2020
Lettre ouverte
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São Paulo e Bruxelas, 10 de junho de 2020

Caro Alto Representante Borrell,

Escrevemos para expressar nossa mais profunda preocupação à luz da situação atual no Brasil, em particular com relação aos ataques sistemáticos realizados pelo Presidente Jair Bolsonaro contra a democracia, os direitos humanos e o Estado de Direito no contexto da pandemia de COVID-19. Nossas organizações - Conectas, Justiça Global, FIDH e MNDH - estão alarmadas com as ações do presidente, que estão levando o país a uma crise política e de saúde sem precedentes e já tiveram sérias consequências para o povo brasileiro.

Desde o primeiro caso de COVID-19 no país, confirmado em 26 de fevereiro, já foram identificados, segundo dados oficiais, mais de meio milhão de casos de COVID-19 no Brasil; enquanto mais de trinta mil pessoas morreram. Muitos temem que esses números sejam subestimados pelo governo e o Brasil já é considerado por especialistas como o novo epicentro da pandemia.

A resposta das autoridades à pandemia alimentou o caos político. O presidente minimizou repetidamente a gravidade da situação, chamando a COVID-19 de "gripezinha", incentivando a população a desobedecer às medidas de isolamento social e quarentena adotadas pelas autoridades locais, ordenando a proibição da publicação de estatísticas oficiais ligadas à pandemia. Dois ministros da saúde renunciaram sucessivamente. A posição permanece vaga no momento em que estamos redigindo a presente carta.

Em meio a essa crise de saúde e ao longo dos últimos meses, o Presidente Bolsonaro tem alimentado e se aproveitado da ansiedade popular, para organizar sua base de apoiadores contra os pilares da democracia, como o judiciário e a mídia independente, e tememos que ele possa usar a crise do COVID-19 para se envolver em retrocessos significativos a longo prazo nos direitos humanos.

O presidente incentivou repetidamente seus apoiadores a participarem de manifestações que espalham mensagens antidemocráticas, o que levou a grandes manifestações de protesto contra os pilares da democracia brasileira. Eles pedem um golpe militar e a paralisação do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional.

A retórica agressiva do presidente Bolsonaro, atacando e minando a imprensa, também incentivou muitos de seus apoiadores a insultar jornalistas online e offline. Ataques físicos violentos foram relatados, mas não foram condenados pelo presidente, levando várias organizações de mídia importantes a parar de acompanhar o presidente fora da sua residência presidencial como sinal de protesto. A ideologia racista também está presente em atos pró-Bolsonaro, com manifestantes exibindo símbolos referenciando o grupo supremacista branco Ku Klux Klan, bem como regimes nazistas e fascistas.

Esses ataques à democracia ocorrem em um contexto em que quase metade dos ministros e cerca de 3.000 funcionários dos Ministérios são militares. Outros funcionários do alto escalão do governo também fizeram declarações contra a democracia e o Estado de Direito. O ministro da Educação, por exemplo, pediu a prisão dos juízes do Supremo Tribunal Federal, uma medida assustadora que não provocou nenhuma reação do presidente Bolsonaro. Outros membros do governo, muitos dos quais vêm do setor militar, fizeram tentativas semelhantes para intimidar os poderes judiciário e legislativo. Isso é motivo de grande preocupação, principalmente considerando a ditadura militar do Brasil. Os riscos de um golpe de estado nunca foram tão altos.

Paralelamente à crise política incitada pelo presidente Bolsonaro e pelas ações de seu governo, a atual situação de saúde pública também é extremamente preocupante, pois as autoridades federais têm sido incapazes de liderar uma resposta nacional adequada à pandemia do novo coronavírus. O descrédito deliberado do governo de evidências científicas e recomendações médicas resultou em dezenas de milhares de vítimas e afetou desproporcionalmente populações pobres, negras, indígenas e quilombolas. Enquanto escrevemos, o Brasil está registrando uma taxa de mais de 1.000 mortes por período de 24 horas. Embora os especialistas temam que o pico da pandemia ainda não tenha sido atingido, Bolsonaro vetou na semana passada o uso de um fundo de assistência emergencial destinado a apoiar as comunidades afetadas. O governo também tentou ocultar dados cumulativos da pandemia e atrasou a divulgação de dados sobre novos casos e vítimas. No domingo passado, as autoridades tiraram do ar o site do governo com dados da série histórica de casos, que só voltaram a ser publicados após uma ordem do Supremo Tribunal Federal. Desde ontem, o governo tentou melhorar sua resposta à crise - mas as mudanças foram apenas superficiais.

Esta situação profundamente preocupante foi recebida em silêncio pela União Europeia. É essencial que a comunidade internacional condene os ataques contra a democracia e o estado de direito perpetrados pelo governo Bolsonaro, bem como seu fracasso em responder adequadamente à propagação da pandemia no Brasil.

Os tratados fundadores da União Europeia estabelecem o fortalecimento e o apoio à democracia, ao Estado de direito, aos direitos humanos e aos princípios do direito internacional como um dos principais objetivos da política externa do bloco. Por isso, pedimos que a União Europeia:

Manifeste publicamente sua grave preocupação com a situação no Brasil, em particular os recentes ataques perpetrados pelo governo brasileiro contra a democracia e o Estado de direito, principalmente a independência do judiciário.

Use todos os canais diplomáticos para instar as autoridades federais brasileiras a deixarem imediatamente de fazer declarações que prejudicam o Estado de direito, em particular através de apelos a um golpe militar e ataques contra a independência do judiciário; parar de incentivar a violência contra a mídia independente; bem como parar de usar a retórica racista para incitar o ódio e a violência.

Permanecemos disponíveis para mais informações e esperamos receber sua resposta.

Com os melhores cumprimentos,

Conectas Direitos Humanos
Justiça Global
Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH
International Federation for Human Rights – FIDH

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